segunda-feira, 8 de junho de 2015

Caso Clínico: Um homem de fé!

Era uma segunda-feira feia. Enferruscada como se diz na minha terra. 
O psicanalista se surpreende quando vê na agenda a previsão de consulta daquele paciente que há muito tinha tido alta pela conclusão positiva do tratamento. Mas pensou que não eram incomuns as chamadas recaídas e novos conflitos emocionais. Porque "Esses demônios que enchem o ar, ninguém sabe onde encontrar"... Pelo menos foi isso que escreveu Goethe em seu Fausto e esse poema inspirou o Freud.
E eis que chega a hora do reencontro. 
Depois do fraterno abraço e as saudações de estilo, mesmo antes do psicanalista perguntar, o velho novo paciente elabora:

- Tu vais achar engraçado o que vais escutar hoje. E já adianto que estou muito bem. Na verdade nunca estive melhor. Mas estou preocupado porque acho que o mundo que me cerca está doente. E como o mundo que me cerca não vai deitar no teu divã, vim aqui para escutares de  mim os problemas do mundo.

O psicanalista pensou, porque psicanalistas pensam como qualquer pessoa, que o velho novo paciente não estava tão bem assim, e que provavelmente estava recalcando alguma coisa e que certamente daqui a pouco estaria a "ver emergir o monstro da lagoa".  Mandou ver:

- Vamos lá meu amigo. Quero escutar as dores do mundo que te cerca. 

O paciente, sem notar no ar preocupado do psicanalista, sobriamente disseca o sapo:

- Depois de seis anos me tratando aqui mesmo contigo, aprendi e ensinei a mim mesmo um monte de coisas boas e ruins. E te agradeço muito pelo que fizeste por mim nas minhas crises todas... mas te digo: A minha fé é que me faz ser uma pessoa melhor e me dá tudo de bom na vida. E o mundo que me cerca pensa que sou um sonhador, um visionário, e eu acho até que pensam que sou meio louco.

O psicanalista (já pensando nas antigas neuroses demoníacas faladas pelo Freud) silenciosamente sentenciou pra si mesmo ... "aiaiai... outro "milagre" das novas igrejas.... Mas perguntou:

- Fale-me dessa tua fé? Me diga de tua relação com deus e o que te impulsiona na fé. Tens frequentado alguma religião?

O paciente sentou-se frente a frente, e olhando nos olhos do psicanalista, não silenciosamente, também sentenciou:

- Meu amigo! Te conheço e conheço o que pensas. Já li teus livros e crônicas. Sei do teu ateísmo, do teu racionalismo, do teu pragmatismo e do teu compromisso com a ciência. Sei que és cartesiano e até confio muito nisso tudo. E não! Não estou frequentando igrejas nem religiões. Nem estou delirando com um deus salvador e aquelas coisas que os religiosos falam. Eu te falei apenas que minha fé me faz uma pessoa melhor e através dela consigo tudo de bom na minha vida. E que o mundo que me cerca não entende isso, e pelo jeito tu também não estás entendendo. Mas eu te explico:
O tratamento contigo, ou seja a Psicanálise, me fizeram ver a mim mesmo e a me conhecer. Entendi e elaborei minhas faltas e desatei os nós de meus conflitos. E domei os demônios que habitam em mim. E fiquei com minha alma tranquila e meu coração sereno. E comecei a ter fé. 
Fé em minhas potencialidades e sobretudo, fé nas minhas boas intenções em relação ao mundo que me cerca ou seja, amigos, trabalho, estudo, amores, dinheiros, e tudo enfim. 
Como te disse, conheço teus escritos. Gosto quando evocas símbolos como liberdade, igualdade, humanidade, fraternidade. Que nome tu dás ao fato de evocar conceitos tão positivos? Acaso acreditas que se não tivesses fé nestes conceitos eles reverberariam de maneira positiva? Onde achas que aprendi a ter fé? Naõ terá sido contigo mesmo?

O psicanalista silenciou por alguns minutos observando o sorriso franco do velho novo paciente. Só depois manifestou-se:

- Nosso tempo por hoje terminou. E acho que não precisas voltar e por isso, concluo:
Te agradeço por voltar aqui. Acho que tu estás bem e feliz. Quanto ao mundo que te cerca, creio que sim, precisa de divã por não estar conectado às almas tranquilas e aos corações serenos. Quando à mim, penso que precisava de tua fé para que eu visse os limites da minha própria pouca fé. 

O psicanalista despediu-se do paciente com um abraço fraterno e antes mesmo de chamar o paciente seguinte, marcou uma sessão extra com sua própria psicanalista. 

Fraterno abraço
André Lacerda
Psicanalista