sexta-feira, 28 de agosto de 2015

As Verdades Secretas (?????)

Quem acompanha minhas crônicas, sabe que nas últimas semanas tenho realçado dois assuntos específicos: O tratamento oncológico e os pacientes submetidos aos efeitos da quimioterapia por estar envolvido no processo, e antagonicamente (nem sei se tão antagônica assim)) a reverberação do tema prostituição desencadeada pelo sucesso televisivo de uma novela exibida em rede nacional, diga-se de passagem na TV aberta. 
Hoje me detenho no segundo tema.
Ouvi um comentário hoje onde alguém disse que a tal novela estava na verdade, glamorizando a prostituição. Não sei se isso procede. Mas sei que se isso proceder, os alarmes naturais das pessoas devem ser imediatamente acionados. Me explico:
Escrevi uma crônica anos atrás onde se observa a seguinte referência:

" Do terreiro, a noite sai para os puteiros mais pobres onde as mulheres idosas vivem seu último tempo de amor e as meninas recém chegadas da área rural aprendem o difícil ofício de meretriz." (A noite brincalhona da Bahia, crônica publicada em 2009).

E escrevi isso, porque sim! O ofício de meretriz é difícil. A meretriz não é uma mulher de vida fácil. No meu entender  não formado de preconceitos, e sim da escuta clínica que faço ao longo de muitos anos, a prostituição é uma das formas mais perversas de produzir humilhação e degradação ao ser humano. E não importa se o resultado disso é um prato de comida nas estradas do sertão nordestino do Brasil, ou se é alguns milhares de euros com viagens de primeira classe e com direito à fotos na rede social onde a moça aparece feliz sob o esplendor da torre Eiffel.
E me valho da obra da Psicanalista Maria Helena Fernandes (O Corpo, da coleção Clínica Psicanalítica), que por sua vez cita os escritos de J.Birmann de 1997 (Le corps et l'affect en psychanalyse: une lecture critique du discours freudien).  
Ali se aprende que entendendo o percurso do corpo na metapsicologia, do corpo pulsional ao ego corporal, passando pelo corpo auto-erótico e narcísico, e após saber que para Freud o corpo se constrói a partir da relação com o outro parental, relação primordial e constitutiva da subjetividade, e considerando ainda que, segundo o dualismo pulsional, o corpo emerge também como lugar de encontro de Eros e Tânatos. Sim! Entre Eros (VIDA) e Tânatos (MORTE).
Dai estabelecer que o CORPO é um lugar de encontro de Eros e Tânatos. 
Esse encontro permitiu a Freud abordar o corpo sob o ângulo de um corpo, por assim dizer, masoquista, baseando-se na ideia de um masoquismo originário. Os avanços freudianos dos últimos cento e poucos anos, apontam que o acesso à representação de nosso próprio corpo está longe de poder ser adquirido simplesmente a partir de uma imagem. É a dor, diz Freud, que, dando acesso ao conhecimento de nossos órgãos, permite uma representação de nosso corpo em geral.
Em 1915, ao enunciar a diferença entre a força pulsional e os destinos das pulsões, Freud concede à força pulsional uma autonomia em relação às representações psíquicas. Enxerga-se aí as premissas de pulsão de morte tal como será formulada na década de 20, a saber, como pulsão sem representação.  Uma explosão da segunda teoria das pulsões, particularmente da noção de pulsão de morte, torna-se necessária já que a clínica analítica em geral mostra que o acontecimento somático, além de alimentar a rede de representações que servem de suporte para a angústia de castração, também remete ao caráter silencioso da pulsão de morte e aos efeitos mais ou menos duráveis e nefastos relacionados à desfunção pulsional.
Tenho convicção que essa crônica deverá ser lida mais de uma vez para o pleno entendimento, sobretudo pra quem não é psicanalista, e os não psicanalistas são a grande maioria de meus leitores. Contudo, tive que ser técnico para me afastar da pecha de preconceituoso que por mais que não seja serei adjetivado pelo pessoal da minha "gestapo" pessoal que insiste em me perseguir desde que comecei a escrever em 2008.
Então... se realmente a tal novelinha estiver glamorizando o exercício da prostituição e o difícil ofício de meretriz, os alarmes naturais devem ser acionados, pois o lugar menos tenebroso que o ser humano que cair nessa cilada frequentará, será o divã de um psicanalista... ou uma clínica psiquiátrica, porque a primeira coisa que descobrirão é que essa verdade JAMAIS será secreta!
E para as meninas que lerem, espero que tenham o  saber de que o CORPO é um lugar de encontro de Eros (VIDA) e Tânatos (MORTE).

Fraterno abraço
André Lacerda - Psicanalista

   


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O Psicanalista No Tratamento Oncológico/Quimioterápico - A Grandeza do Espírito!

Reabilitados coração e psiquê, retomo com a série onde retrato a figura do psicanalista na vida e no tratamento de pacientes acometidos pelo câncer. 
E de imediato pego pelo nome : CÂNCER!!!!!
Sim. Essa doença tem nome. E o nome é Câncer. Não é aquilo; não é o mal; não é o indizível; É simplesmente o câncer, uma doença que pode ser tratada e na grande maioria dos casos pode haver sim a cura.
E foi assim que o psicanalista no final daquele primeiro mês de tratamento quimioterápico, iniciou a conversa com sua paciente oncológica. 
Foi um mês terrível, e as reações adversas do remédio estavam sendo mais terríveis do que se poderia imaginar. 
As dores eram intensas. As tonturas e enjoos eram terríveis. A fraqueza por falta de alimentação era arrasadora e já tinham se ido quase dez kilos naquele primeiro mês. E o pior: A depressão veio avassaladoramente. 
O remédio inibira a produção de dopamina, endorfina e serotonina. E isso gerou a chamada depressão física, que na verdade tem a mesma gravidade da depressão psicológica, com a diferença de que  ao final do tratamento a depressão física também chegaria ao fim.
O psicanalista ouvir todas essas demandas naquilo primeiro dia do segundo mês de tratamento. Sua paciente estava com todos os sinais de um estado depressivo recorrente, e naquele momento, ele pensou que o melhor lugar para ocupar seria o de consolador. 
E assim falou:
- Amada paciente. Acho que tudo é uma questão de pobreza e de riqueza. Não de valores na conta do banco, mas de espírito. 
Queres ver?  
Imagina um espírito pobre falando de sua pouca ração. Certamente ele vai dizer:
 " Meu café da manhã hoje só tinha pão com ovo!"  
A mesma ração sendo dita por um espírito rico:
" Meu desjejum de hoje foi esplêndido. Consistiu num ovo estrelado com a gema molezinha e as bordas levemente crocantes, acompanhado de um ainda quentinho pedaço de pão francês. E eu peguei o garfo e furei a gema com cuidado e um pedaço de pequeno de pão molhou-se naquele fio de ouro amarelo. Foi maravilhoso meu início de dia!"
Vi agora mesmo que quando a enfermeira chegou com o remédio tu te referiu a ele como sendo tua dose diária de veneno e que aquilo estava te matando. 
E vi o quanto erraste!
Deverias de ter pensado que somente para chegar até teu leito, aquele remédio passou por pelo menos quatro profissionais de saúde de formação superior (médico, farmacêutico, duas enfermeiras), por mais uma grande equipe de técnicos e auxiliares, e mais uma estrutura hospitalar de primeiro mundo. Deverias ter pensado que esse tratamento tem um custo médio de cem mil dólares e teu plano de saúde está cobrindo tudo. 
Deverias ter pensado que cada gota desse remédio significa um passo distante do câncer e por isso ele não é veneno e sim o teu bálsamo da vida. 
Alma tranquila e coração sereno!
Amanha estarei aqui contigo para a próxima sessão e certamente teu espírito terá assimilado minha fala. E tu já vais sair daqui hoje sentindo não o gosto do veneno. Mas a grandeza de teu espírito. 

Fraterno abraço
André Lacerda - Psicanalista

sábado, 15 de agosto de 2015

O Book Rosa!

Sob o céu azul daquela manhã carioca, ele lembrava do início e do fim de tudo. Porque o fim tinha sido recente e ainda sangrava. E cada gota de sangue caída era a certeza de que o sangramento seria constante por um bom tempo ainda. 
Mas acreditava que  por mais sofrido que o momento transcorra, no início a dor foi mais lancinante. 
No início ela vendeu o próprio corpo para o mesmo ginecologista inescrupuloso que assistiu seu parto e acompanhou o pré natal de sua gestação indesejada e imprevista. 
Ela precisava. O perverso médico ofereceu os trinta dinheiros de sua iniciação destrutiva, Ela topou. 
Naquela primeira vez experimentou sentimentos terríveis. Mas engoliu o vômito de seu nojo. Os trinta dinheiros lhe ajudariam. 
E se deu ao primeiro "cliente" por trinta dinheiros por mais algumas dezenas de vezes. Mas já na primeira vez, encarou aquilo como um "trabalho" e estava pensando em diversificar a atividade até que conseguisse um emprego decente que lhe possibilitasse viver com certo conforto. 
Começou a frequentar boates. E porque era um raio de sol de linda no esplendor de seus vinte anos de idade, tornou-se rapidamente uma das mais requisitadas. E já não eram mais os trinta dinheiros. Voltava pra casa no final das madrugas com o corpo e as entranhas dilacerados. Mas na bolsa de grife cara habitavam centenas de dinheiros. Talvez milhares. Poderia alimentar o filho e quem sabe até ajudar mais alguém. 
Desenvolveu um mecanismo de defesa do ego específico para todo aquele turbilhão. Seria apenas um "trabalho". Uma atividade remunerada com tempo pré estabelecido. O telefone tocava. O "cliente" marcava e combinavam o preço. Combinavam em qual alcova se encontrariam. Ela ia. Fazia. Recebia o preço de sua alma. Pronto. Tudo se terminava em uma hora. Com sorte em duas, pois dai o preço dobrava. Voltava pra casa e pra sua vida onde tinha nome próprio. Pensava que tinha que cuidar em não confundir seu próprio nome com o nome de trabalho que adotara.
E assim se deu. Atendia nas 24 horas do dia. E eram 5, 6, 10 sessões de puro êxtase sexual a cada 24 horas. Para os "clientes". Para ela era 1 hora (duas, com sorte) de pura figuração e com o tempo tornou-se uma perfeita "profissional". Aquilo era o seu "trabalho".
Durante uma década viveu equilibrando-se na corda bamba de sombrinha. Afinal tinha uma vida com família e amigos e tinha uma vida paralela que ninguém sabia. E deus o livre se alguém descobrisse ... Teve que conviver  com a mentira e tornou-se também "profissional" na mentira. Aprendeu o difícil ofício. Tornou-se "expert" na arte de seduzir. Mas cada vez que "trabalhava" sentia que seu próprio sangue ia congelando... e congelando... e congelando...
E quando ele apareceu na sua vida ela já não tinha sangue nas veias. Era um gelo.... talvez (??) um pouco derretido porque ele era envolvente, mas ainda assim um gelo...
Contou a verdade (no fundo apenas uma pequena parte da verdade). Ele aceitou. Fizeram juras. Ela não cumpriu. Ele não cumpriu em contrapartida. Brigaram. Ofenderem-se:
- Cretino! Mentiroso! Enrolador!
- Mentirosa! Meretriz! Cretina!
Ele matou-se.
Ela seguiu a vida... Corpo e entranhas dilaceradas e escravizadas pelo difícil ofício.... Corpo e entranhas que sequer existiam mais... Era só uma máquina. Uma máquina e uma alma escravizada pelo vil metal dos trinta dinheiros...
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Essa crônica é apenas uma estória. Escrevi assustado com o glamourizado tema da prostituição. Sim. Book Rosa, Ficha Rosa, Acompanhamento VIP. Tudo é na verdade PROSTITUIÇÃO.  E tudo isso é produto da Exploração sexual, e sempre vinculado ao sofrimento humano. 
Fraterno abraço
André Lacerda - Psicanalista 

      
    

sábado, 8 de agosto de 2015

Os Trinta Dinheiros!

Naquela manhã de sol releu fragmentos do poema de Pessoa:
".... E eu que tanto amo a morte e a vida, se tivesse coragem também me mataria!"
Não via outro caminho que não fosse o suicídio. Estava decidindo por duas hipóteses apenas: Ou o  suicídio indigno da desistência onde sua persona não mais tivesse face, ou o suicídio do corpo e da alma, mas achava que esse não teria coragem.
Fugir não.... Fugir seria pior que o suicídio.
Era o capitão de seu barco e afundaria entre as velas rolando por sobre o tombadilho, a popa e a proa. Com sorte a quilha arrancaria sua cabeça antes do afogamento que é morte cruel. Ou quem sabe com sorte, os cordames do velame se enroscassem no seu pescoço e ele morreria enforcado antes do afogamento. Que a morte do afogado é cruel. Com sorte o enforcamento.
Lembrou-se dos enforcados da história, e Judas morreu enforcado tendo no bolsos os trinta dinheiros da sua traição ou da sua crença. Há controvérsias. Certa vez quando leu a obra do historiador Flávio Josefo (A Guerra dos Judeus), pensou que Judas e Jesus de Nazaré na verdade tinham os mesmos propósitos.
Ambos queriam a libertação do povo de Israel que vivia sob a dominação de Roma. Jesus prometeu a libertação. Judas acreditou. Quando Jesus falou que seu reino não era aquele, e que dessem a César o que era de César, Judas ficou puto da cara e entregou seu mestre aos fariseus. Porque naquela época já tinha a corrupção.
Depois se arrependeu.
Escolheu uma árvore morta. Laçou o galho mais forte. Em lágrimas de sal envolveu o pescoço com o nó da forca. Pulou. Em um segundo pescoço quebrado. Morto. Balançando pendurado numa árvore no alto de um penhasco dantesco. No bolso da túnica... os trinta dinheiros.
Pensou que a forca seria um ato digno mesmo que infernalmente dramático. E não teria os trinta dinheiros no bolso da túnica. Não traiu e não se corrompeu. Buscou apenas a libertação. Perdeu pro sistema. Foi engolido.
Mas forca não....
Agora era esperar a fúria das águas e afundar com o barco...
Seria achado por algum resgate entre o passadiço. Entre a proa e a popa.
 
Fraterno Abraço
André Lacerda - Psicanalista