quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Admirável(??) Mundo Novo!

Escrevi em 2008, à pedido de uma turma de acadêmicos da faculdade de Direito de uma Universidade de Porto Alegre, minha análise do livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e vou reproduzir aqui para os leitores do blog. Espero que gostem.

Esse livro foi escrito na década de 30 por um britânico preocupado com os valores da cultura americana, então em ascensão.
Portanto, ele construiu uma distopia futurista, localizando sua trama na sua Inglaterra americanizada que idolatra Henry Ford praticamente como um deus.
Eu me pergunto se esse livro não estaria mais atual hoje em dia do que quando ele foi escrito, há mais de 70 anos. Eis um caso raro de previsão bem sucedida do futuro.
Mas é claro que Huxley acerta bem mais nas questões culturais e sociais do que nas tecnológicas. Teria sido difícil para ele à época prever a revolução propiciada pela era digital.
De qualquer maneira, o admirável mundo nem tão novo assim de Huxley é uma ditadura da felicidade. É-se feliz, querendo ou não. Na verdade, não existe não querer ser feliz. Todos querem ser tão felizes quanto puderem e ponto.
Quando eu acabei de ler esse livro, uma das primeiras idéias que me ocorreram é que o autor havia utilizado pressupostos análogos aos expressos na obra O Mal-Estar na Civilização, de Sigmund Freud.
No capítulo II dessa obra, Freud enumera as vicissitudes de um indivíduo em busca da felicidade dentro de uma sociedade e os possíveis recursos disponíveis a esse indivíduo.
Entre os principais citados encontram-se a sublimação das pulsões insatisfeitas, a elaboração filosófica dessas pulsões – o que permitiria uma redução de sua força, ou a fuga através do uso de entorpecentes.
Aldous Huxley lida com os mesmos problemas, mas suas soluções não estavam restritas ao então contemporâneo. Pareceu-me, de fato, que ele tivesse optado por lidar com as condições inescapáveis delineadas pela psicanálise fazendo uso de métodos comportamentalistas.
Ele imaginou uma sociedade em que as pessoas não assimilassem através da cultura nenhuma necessidade que não pudessem satisfazer. Além disso, supôs uma engenharia social capaz de, juntamente com a engenharia genética, condicionamentos durante o sono e durante o desenvolvimento, fazer com que cada ente fosse predisposto a gostar do trabalho a que estivesse destinado a executar.
Os recursos materiais e de saúde eram providos amplamente para a população.
O sexo era explicitamente estimulado, sob uma forma promíscua e meramente física, de modo que todos encontravam facilidade na obtenção de parceiros.
O autor também reconheceu que algumas necessidades são primevas demais para que pudessem ser influenciadas culturalmente.
Para tanto ele dispôs sua sociedade fictícia de alguns recursos essencialmente químicos, como o “substituto para paixão violenta” e o “substituto para gravidez” (já que gestação natural havia sido inteiramente banida).
E para a eventualidade incontornável de alguma coisa sair errado e disso decorrer alguma frustração, existe o soma.
O soma é uma droga sem efeitos colaterais capaz de anestesiar qualquer sensação ruim e embarcar o usuário em uma viagem de tranqüilidade e imbecilidade por tempo suficiente para que o infortúnio se dissipe. Não querem mais nada.
Com isso, estavam dadas as condições individuais necessárias para que não se produza inquietude entre os membros da sociedade.
Como recursos coletivos, também foram suprimidas instituições como família, arte, filosofia, pensamento crítico, individualidade, privacidade, intimidade.
Na verdade, um dos axiomas centrais da distopia huxleiana é a idéia da dissipação dos sentimentos intensos.
Não há tempo, espaço ou pressuposto para o surgimento de elementos profundos na vida de alguém.
Sem família, sem laços muito próximos, sem ideologias, sem incentivo à criação de uma identidade, sem amor. Basicamente, relações que atualmente estabelecemos que concentrem nossas energias foram substituídas ou dispersadas.
É a analogia da represa: se for feito apenas um furo em uma represa, a água jorrará com enorme força por aquela fissura. Se, entretanto, forem feitos diversos furos, a pressão estará distribuída entre todos eles, amenizando significativamente a força do jorro. Não deixa de ser uma idéia psicodinâmica.
E é aqui que me parece que a previsão de Huxley se aproxima mais da realidade atual. Não há como negar que, do período entre - guerras para cá, a cultura americana se espalhou e consolidou tremendamente através do mundo globalizado.
O industrialismo hegemônico de hoje em dia estimula o consumismo, que por sua vez estimula o leviano descarte de todos os produtos em favor da compra de novos, exatamente como é descrito na novela.
E o mais interessante, parece-me que as relações sociais que estamos estabelecendo enquanto sujeito está também cada vez mais voltada para o descartável e o disperso.
Paradoxalmente, por mais que estejamos fortemente voltados para uma formação individualista de modo de ser, o indivíduo moderno possui pouco de sujeito. Existe uma queda de envolvimento efetivamente pessoal nas relações que ele estabelece.
Vemos que entre as diretrizes de como ser uma pessoa, o paradigma sócio-cultural dos nossos tempos enfatiza aquelas ações voltadas para si.
A preocupação é com a sua carreira, seu prazer, seu divertimento, seu currículo, sua saúde, seu dinheiro. Até aí não há nada de tão alarmante nem tão absurdo, pelo menos vendo a situação assim superficialmente.
Mas é relevante observar que tipos de vínculos existem nessas dimensões de nossas vidas. É difícil encontrar o espaço da subjetividade, onde a associação sólida e duradoura com um elemento essencialmente pessoal se manifeste.
Não é verdade que hoje em dia um empresário qualquer faria melhor em trocar de empresa dentro de não mais do que 5 anos? Não é verdade que firmar uma identidade consiste em grande parte em referir-se a uma tribo cultural, ou seja, a um modelo idealizado prévio e a um grupo? Não é verdade que hoje em dia o nosso apego aos objetos é essencialmente muito pequeno, uma vez que são facilmente copiáveis e substituíveis? Quem é que ainda usa guardanapos de pano, por exemplo? Até mesmo o conceito de amigo está sendo massificado e pulverizado, quando atribuído a centenas de conhecidos aleatórios por aí através das redes sociais como o Orkut.
Mas o que mais me fez pensar foram as relações afetivas. Um amplo espaço é dedicado a elas no Admirável Mundo Novo – ou à falta delas. Na obra, “cada um pertence a todos”.
Qualquer relacionamento duradouro é visto com maus olhos, comportamento inadequado e repreensível. Esse talvez tenha sido o aspecto da cultura vigente que mais afetou o Selvagem – personagem não condicionado, não nascido na civilização, inserido na trama para contrastar as diferentes realidades.
É estranho, pois na cultura em que eu vivo, creio ver coisas similares. Não é que hoje em dia o lógico, o razoável, é “ficar”? Eis algo tão desprovido de significado que não possuiu mesmo um substantivo para designá-lo.
É meramente uma ação, quase que inteiramente vazia. Tão fugaz quanto humanamente possível, pois se chega ao ponto de reduzir a experiência a cifras: o melhor é ficar com o maior número de pessoas possíveis, especialmente no que diz respeito aos homens. Poderoso é aquele que pega três, quatro em uma mesma noite. E a essa altura já não importa mais quem eram. O que importa é que foram quatro.
Eventualmente, de fato, uma ficada produz um “ficante”. E quem sabe esse ficante acabe por chegar a um estágio em que se torne interessante estabelecer algum tipo de contrato de exclusividade e se constituir o que ainda se chama de namoro.
O namoro de hoje em dia já é alguma coisa muito mais instável do que foi, digamos, há meio século atrás. Sem contar que desconfio que esteja germinando já uma desconfiança para com o namoro.
“Bom mesmo é o relacionamento aberto”, eis um pressuposto que já se vê pelo ar, tênue, mas presente. O problema é que as pessoas na nossa sociedade ainda não estão tão condicionadas.
Ninguém escuta ao dormir um gravador repetindo “cada um pertence a todos”. Portanto, as pessoas são possessivas. Mas nada disso está fixo na carne – não duvido que uma manifestação midiática em filmes, novelas televisivas e demais veículos de massa não produza um efeito quase tão bom quanto os da hipnopedia sugerida por Huxley.
E eu não estou dizendo que tudo isso está errado. É um reflexo da época e da cultura. No Admirável Mundo Novo, tais pautas eram dadas por um estado totalitário que se auto-perpetuava através da sujeição, massificação e controle dos indivíduos. Na nossa realidade, temos as resultantes de uma série de influências, políticas, interesses, subjetivações que obedecem a determinados interesses, ora mais, ora menos hegemônicos.
Não quer dizer que esse comportamento seja uma infantilização das emoções humanas, uma entrega ao imediatismo gratuito e impessoal. Mas eu não posso deixar de pensar que é bem possível que seja esse o caso, ainda assim.
Ou é bem possível que ele venha a se tornar o caso, ou que já o seja em alguns estratos da população.
É sem dúvida uma forma de sofrer pouco, se frustrar pouco, já que não há investimento intenso em quase (?) nada.
Não se reconhece mais nada de si no mundo externo, então não se perde nada com a quebra das relações. É um agitado desapego.
Pois é aí então que eu me pergunto: seria eu um Selvagem?.....(Muitos risos)......

Porto Alegre, na Assunção, nublado, num raro entardecer ( 20 horas é entardecer???) de relativa folga, 29 de outubro 2008.

Fraterno Abraço
André