Pessoalmente, eu acho horrível. Parece que estou vendo um feto ou ainda um recém nascido morto. Mas... vamos em frente.
Nos últimos anos, tornou-se mais comum observar mulheres adultas que adotam e cuidam de bebês reborn — bonecos hiper-realistas que imitam com impressionante fidelidade a aparência de recém-nascidos. Essas mulheres costumam dar nomes aos bonecos, compram roupas, montam quartos e, em muitos casos, os tratam como filhos reais. O fenômeno, que desperta curiosidade e até estranhamento social, pode ser analisado por diversas vertentes da psicologia. No entanto, a psicanálise oferece uma lente privilegiada para compreendermos os significados inconscientes que podem estar em jogo nesse tipo de relação.
1. O bebê como objeto transicional
Segundo Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, o objeto transicional é aquilo que permite à criança suportar a ausência da mãe e construir uma realidade interna autônoma. Embora o conceito se refira à infância, é possível pensar que, em algumas mulheres, o bebê reborn ocupa uma função semelhante: ele fornece uma ponte simbólica entre o mundo interno e a realidade externa, auxiliando na elaboração de perdas, frustrações ou vivências de abandono. Não se trata de um “delírio”, mas de uma forma simbólica de manejo da dor psíquica.
2. O desejo de maternidade e a fantasia realizada
Na perspectiva freudiana, os sintomas e comportamentos podem ser compreendidos como formações do inconsciente, ou seja, realizações deformadas de desejos recalcados. O vínculo com o bebê reborn pode surgir como tentativa de realizar um desejo de maternidade frustrado — seja por infertilidade, perda gestacional, luto ou pela ausência de oportunidade para constituir uma família. Nesse sentido, o boneco funciona como um substituto simbólico do filho real, poupando a mulher das angústias e exigências que a maternidade concreta impõe.
3. O investimento narcisista e o ideal de perfeição
O bebê real é uma fonte de prazer, mas também de frustração: ele chora, exige atenção constante, tem vontade própria. O bebê reborn, ao contrário, é passivo, está sempre “disponível”, e jamais confronta. Para a psicanálise, isso pode indicar um investimento libidinal narcisista: o outro é amado enquanto extensão idealizada do próprio eu. Não há alteridade. O boneco representa um ideal de perfeição e obediência — uma fantasia de controle absoluto sobre o objeto amado.
4. Compulsão à repetição e elaboração do trauma
Freud descreveu a compulsão à repetição como uma tendência do psiquismo a repetir situações dolorosas não elaboradas, na tentativa inconsciente de dominá-las. Algumas mulheres que recorrem aos bebês reborn passaram por experiências traumáticas — como a perda de um filho, abuso emocional ou abandono. Ao cuidar de um boneco que “não morre” e “não parte”, elas repetem simbolicamente a situação original, mas agora com um desfecho reparador. O cuidado com o reborn pode ser uma forma de dar sentido ao sofrimento passado.
5. O reborn como antídoto contra o vazio
Em um mundo marcado pelo individualismo e por vínculos cada vez mais frágeis, o bebê reborn pode aparecer como resposta subjetiva ao vazio existencial. Ele oferece companhia, rotina, função. A mulher que o adota se torna novamente “cuidadora”, “mãe”, “protetora” — papeis que conferem sentido e identidade. Assim, o boneco não é apenas um objeto inanimado, mas um catalisador simbólico de significados profuprofunosl
Por fim, importante pensar assim:
A psicanálise não busca patologizar comportamentos, mas compreendê-los em sua singularidade. Perguntar “por que alguém cuida de um bebê reborn?” é menos importante do que investigar “o que esse bebê representa para essa mulher em particular?”. Trata-se de reconhecer que há, por trás desse gesto, um universo simbólico marcado por perdas, desejos, frustrações e tentativas de reparação.
Em alguns casos, o bebê reborn pode ajudar a elaborar o luto, fornecer estabilidade emocional ou até prevenir formas mais graves de sofrimento psíquico. Em outros, pode sinalizar um funcionamento psíquico mais regressivo ou defensivo, exigindo escuta clínica atenta. Em ambos os casos, o olhar psicanalítico se debruça não sobre o julgamento, mas sobre o enigma do desejo.
Fraterno abraço!
André Lacerda - Psicanalista
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