sábado, 12 de abril de 2025

Bullying em Lacan

 Quem me acompanha sabe que sou Lacaniano.  Não poderia falar de qualquer coisa sem fundamentar em Lacan. Por essa razão, complemento a crônica anterior.

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O bullying, na perspectiva da psicanálise lacaniana, pode ser compreendido a partir de conceitos fundamentais como o registro do imaginário, a constituição do eu (moi), e a dinâmica do gozo (jouissance).

Em Lacan, o imaginário é o domínio das imagens, identificações e rivalidades. O bullying se relaciona muito com esse registro porque, na formação do "eu" (principalmente na infância e adolescência), o sujeito se reconhece na imagem do outro — e, ao mesmo tempo, sente-se ameaçado por ele. Lacan chama atenção para como o eu é estruturado como uma "armadura" defensiva contra essa ameaça do outro, o que pode explicar a agressividade típica do bullying: uma forma de proteger ou afirmar a própria imagem atacando a do outro.

Além disso, o bullying pode ser visto como expressão de uma tentativa de lidar com a angústia gerada pela diferença. O outro — diferente em aparência, comportamento, discurso — encarna algo que perturba o sujeito, que responde tentando apagá-lo ou humilhá-lo. Em Lacan, o diferente muitas vezes é vivido como o estranho (l’Unheimliche), uma ameaça ao narcisismo do sujeito.

Outro ponto importante é o gozo: no bullying, há um aspecto de satisfação inconsciente tanto para o agressor (no exercício de poder ou superioridade) quanto, paradoxalmente, para a vítima, que pode ficar presa em uma posição de gozo masoquista, mesmo que isso seja sofrido.

Disso, podemos refletir:

O bullying é um fenômeno imaginário de rivalidade e defesa narcísica.

Ele surge da dificuldade de lidar com o outro como diferente.

Envolve dinâmicas de gozo, angústia e identificação.

Lacan desenvolve a ideia dos quatro discursos (discurso do mestre, do histérico, do analista e da universidade) para explicar os modos de laço social, ou seja, como os sujeitos se organizam e se relacionam entre si. O bullying escolar pode ser interpretado a partir desses discursos, especialmente o discurso do mestre e o discurso do histérico.

1. O bullying escolar e o discurso do mestre

O discurso do mestre é estruturado pela lógica da dominação: o Mestre é aquele que ocupa o lugar do saber e da autoridade sem saber de fato o que é esse saber. Ele ordena, institui, governa. No bullying escolar, o agressor ocupa muitas vezes esse lugar de "mestre": é aquele que "sabe" quem é o fraco, o diferente, o estranho, e impõe sua lei sobre o outro.

Assim, o bullying seria uma tentativa de manter uma hierarquia imaginária onde o agressor reafirma seu "poder" diante do grupo, sustentando um laço social baseado na exclusão e na dominação. Isso também preserva, para o grupo, uma certa "ordem simbólica", ainda que perversa: o grupo se organiza em torno de quem está "dentro" e de quem é colocado "fora".

O próprio espaço escolar, que deveria ser um lugar de transmissão do saber, muitas vezes opera no regime do discurso do mestre, no qual a autoridade é valorizada mais do que o questionamento ou a singularidade. Nesse contexto, o bullying é quase uma "função social": expulsa ou corrige quem ameaça a homogeneidade do grupo.

2. O bullying e o discurso do histérico

O discurso do histérico é aquele em que o sujeito, em posição de falta, provoca o Outro — exige que o Outro lhe diga quem ela é. No bullying, a vítima frequentemente é colocada nessa posição: sua própria existência se torna uma pergunta aberta ("Quem sou eu? Por que sou diferente?") para o Outro (os colegas, o grupo), mas esse Outro responde com rejeição, gozação ou violência.

O agressor também pode ser visto como histérico em outro sentido: ele interroga o Outro (o diferente) para confirmar seu próprio lugar. "O que é esse corpo estranho aqui entre nós?" — mas em vez de acolher a diferença, ele a elimina.

Assim, o bullying escolar seria o sintoma de uma falha no laço social: ao invés de operar no discurso do analista (que acolheria a falta e permitiria a emergência do sujeito em sua singularidade), a escola (e o grupo escolar) opera no discurso do mestre (imposição de normas) e do histérico (questionamento ansioso e rejeição da diferença).

3. Gozo e exclusão

Outro conceito crucial é o de gozo (jouissance). O bullying está ligado ao modo como o grupo maneja o gozo: o diferente é visto como alguém que goza de um modo "estranho", que ameaça a uniformidade. O gozo do outro é intolerável. Assim, ele é excluído ou violentado para que o grupo possa manter uma certa ilusão de consistência.

Ou seja:

O bullying é sustentado por laços sociais próprios do discurso do mestre e do histérico.

Ele protege o grupo da angústia causada pela diferença e pela falta.

O espaço escolar muitas vezes reforça essa lógica, em vez de abrir espaço para a subjetivação da diferença.

E dai??? O que fazer???

Uma saída ética para o bullying, a partir da psicanálise lacaniana, não seria simplesmente reprimir o bullying ou punir os agressores, mas sim reformular o próprio laço social. Em Lacan, a ética não é uma moral de normas, mas um compromisso com o desejo e com o respeito à singularidade do sujeito.

1. A ética do desejo

Lacan propõe uma ética que se resume na frase: "Não ceder de seu desejo" (ne pas céder sur son désir). Isso quer dizer que a ética não é seguir regras externas, mas manter-se fiel àquilo que nos constitui como sujeitos: nossa falta, nosso desejo, nossa singularidade. No contexto escolar e do bullying, isso implica criar um espaço onde cada sujeito possa existir com sua diferença, sem ser forçado a se encaixar em moldes padronizados.

Assim, o problema do bullying não se resolve eliminando o conflito ou impondo mais normas autoritárias (o que seria apenas reforçar o discurso do mestre), mas ensinando o respeito à falta do outro, à sua forma singular de gozar (jouir), sem querer reduzi-lo ou anulá-lo.

2. O papel do discurso do analista

A verdadeira saída passa pelo que Lacan chama de discurso do analista. Nesse discurso, o analista (ou, no contexto escolar, a instituição ou educador que adota essa posição) não ocupa o lugar de mestre que ordena, nem o lugar de histérico que exige do outro uma resposta. Ele ocupa o lugar de causa do desejo: ou seja, ele suporta o não-saber, acolhe a falta, e permite que o sujeito fale.

Aplicado à escola:

Em vez de rotular o agressor ou a vítima, criar espaços de fala onde cada um possa colocar em palavras seu sofrimento, sua rivalidade, sua angústia.

Em vez de buscar eliminar o conflito, reconhecer que o conflito nasce da diferença e é constitutivo do laço social.

Sustentar o desejo dos sujeitos, ajudando-os a encontrar modos singulares de estar no mundo sem precisar aniquilar o outro para afirmar-se.

3. Acolher o sinthoma

Em seus últimos ensinamentos, Lacan fala do sinthoma como aquilo que amarra o sujeito em sua estrutura. Cada um tem seu modo de "fazer laço" com o real, e isso é inegociável. Uma saída ética para o bullying seria, então, acolher o sinthoma do outro, em vez de querer normalizá-lo. Não tentar corrigir o que "falta" no outro, mas reconhecer que a falta é constitutiva de todo ser falante.

Uma saída ética implica operar no discurso do analista, não no discurso do mestre.

É preciso criar espaço para que a singularidade de cada sujeito emerja e seja respeitada.

O conflito deve ser trabalhado, não apagado.

A ética é do desejo, não da norma.

Aproveito, pra fechar, cito Lacan sobre ética e desejo:

(Lacan, Seminário 7 - A Ética da Psicanálise)

 "O único erro ético é trair o próprio desejo."

Essa frase resume a posição ética de Lacan: não se trata de obedecer normas ou evitar o sofrimento, mas de não trair o que há de mais singular no sujeito.

No bullying, tanto quem agride quanto quem sofre é, de alguma forma, capturado pela pressão de se conformar a um ideal (ser igual, não ser diferente). A ética lacaniana propõe resistir a essa captura.

Diante do bullying, a psicanálise lacaniana nos convida a um caminho ético: não se trata de eliminar o conflito ou suprimir a diferença, mas de sustentar o desejo e a singularidade de cada sujeito no laço social.

A escola, portanto, não deve agir apenas punindo ou protegendo, mas criando espaços em que a palavra possa circular e onde a diferença não seja anulada, mas acolhida.

Afinal, como nos ensina Lacan, a verdadeira violência não está na diferença do outro, mas na recusa em aceitá-la como parte constitutiva de nosso ser-em-laço.

Fraterno abraço 

André Lacerda - Psicanalista




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