segunda-feira, 26 de maio de 2025

Compulsão ao jogo sob a ótica psicanalítica: um olhar clínico.


A compulsão ao jogo, ou jogo patológico, é uma forma contemporânea de sofrimento psíquico que se manifesta por meio de uma repetição insistente e autodestrutiva, muitas vezes incompreensível para o próprio sujeito. No campo da psicanálise, tal fenômeno não é reduzido a um transtorno de controle dos impulsos, como frequentemente propõe a psiquiatria, mas é abordado como um modo singular de subjetivação, enraizado em conflitos inconscientes, na economia pulsional e na relação do sujeito com o desejo e com o gozo.

 Repetição e pulsão de morte:

Freud, em Além do princípio do prazer (1920), introduz a noção de repetição compulsiva como manifestação da pulsão de morte. A ação compulsiva não visa a obtenção de prazer, mas a repetição de uma cena originária traumática, na qual o sujeito busca, sem sucesso, uma possibilidade de domínio. (FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Imago.)

Nos casos clínicos, observa-se que a repetição da perda no jogo aparece como um modo de reafirmar um destino inconsciente, frequentemente vinculado à culpa ou à necessidade de punição — aspectos já sugeridos por Freud em O eu e o id (1923).

Aposta, risco e gozo:

A psicanálise lacaniana amplia esse campo ao introduzir o conceito de gozo (jouissance), que não se confunde com prazer. O gozo é uma forma de satisfação que inclui o sofrimento e que excede o domínio simbólico. (LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.)

O jogo compulsivo aparece, então, como um ato de gozo, onde o risco e a tensão proporcionam ao sujeito uma excitação que está mais próxima da pulsão de morte do que do princípio do prazer.

 Função subjetiva do jogo

A escuta clínica mostra que o jogo pode ser um equivalente simbólico precário, ocupando o lugar de algo que falta ao sujeito: uma função paterna não simbolizada, um ideal em colapso, uma perda originária não elaborada. (NASIO, Juan-David. Os grandes casos de neurose em Freud: histeria, obsessão, fobia. Martins Fontes, 2001.)

Nasio aponta que o sintoma pode funcionar como uma “resposta subjetiva” a um impasse com o desejo do Outro.

Em muitos relatos clínicos, os jogadores descrevem o ato de jogar como uma “necessidade”, como algo que escapa ao controle da vontade — sinal de que o sintoma está a serviço da economia pulsional.

Dimensão estrutural:

O jogo compulsivo pode se inscrever nas três grandes estruturas clínicas:

Na neurose, aparece como sintoma, acompanhado de angústia e culpa. O sujeito joga, se arrepende, mas repete.

Na psicose, pode estar inserido em uma construção delirante. A aposta pode adquirir valor místico ou persecutório.

Na perversão, o jogo pode funcionar como montagem fetichista, erotizando a perda ou a transgressão da lei. (MILLER, Jacques-Alain. Introdução à clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.)

MILLER destaca a importância da estrutura na direção do tratamento e na escuta do sintoma.

Intervenções clínicas:

A intervenção psicanalítica não visa à erradicação imediata do comportamento, mas sim à escuta de seu sentido inconsciente. O jogo é interrogado não apenas como um problema de conduta, mas como uma resposta subjetiva à falta. ( SZPUNBERG, Tania Rivera. A aposta do sintoma: psicanálise e compulsões contemporâneas. In: COUTINHO JORGE, M. (org.) O mal-estar na civilização revisitado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.)

O objetivo do tratamento é permitir que o sujeito construa uma nova relação com o gozo implicado em sua repetição, promovendo a possibilidade de subjetivação do sintoma e de laço com o Outro fora do circuito autodestrutivo.

Espero que o texto ajude a quem precisa, e quem sabe, sirva de alerta aos que ainda não precisam.

Fraterno abraço!

André Lacerda - Psicanalista 



terça-feira, 20 de maio de 2025

Bebês Reborn”: Um olhar psicanalítico sobre o cuidado simbólico e o desejo inconsciente

Pessoalmente, eu acho horrível. Parece que estou vendo um feto ou ainda um recém nascido morto. Mas... vamos em frente.

Nos últimos anos, tornou-se mais comum observar mulheres adultas que adotam e cuidam de bebês reborn — bonecos hiper-realistas que imitam com impressionante fidelidade a aparência de recém-nascidos. Essas mulheres costumam dar nomes aos bonecos, compram roupas, montam quartos e, em muitos casos, os tratam como filhos reais. O fenômeno, que desperta curiosidade e até estranhamento social, pode ser analisado por diversas vertentes da psicologia. No entanto, a psicanálise oferece uma lente privilegiada para compreendermos os significados inconscientes que podem estar em jogo nesse tipo de relação.

1. O bebê como objeto transicional

Segundo Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, o objeto transicional é aquilo que permite à criança suportar a ausência da mãe e construir uma realidade interna autônoma. Embora o conceito se refira à infância, é possível pensar que, em algumas mulheres, o bebê reborn ocupa uma função semelhante: ele fornece uma ponte simbólica entre o mundo interno e a realidade externa, auxiliando na elaboração de perdas, frustrações ou vivências de abandono. Não se trata de um “delírio”, mas de uma forma simbólica de manejo da dor psíquica.

2. O desejo de maternidade e a fantasia realizada

Na perspectiva freudiana, os sintomas e comportamentos podem ser compreendidos como formações do inconsciente, ou seja, realizações deformadas de desejos recalcados. O vínculo com o bebê reborn pode surgir como tentativa de realizar um desejo de maternidade frustrado — seja por infertilidade, perda gestacional, luto ou pela ausência de oportunidade para constituir uma família. Nesse sentido, o boneco funciona como um substituto simbólico do filho real, poupando a mulher das angústias e exigências que a maternidade concreta impõe.

3. O investimento narcisista e o ideal de perfeição

O bebê real é uma fonte de prazer, mas também de frustração: ele chora, exige atenção constante, tem vontade própria. O bebê reborn, ao contrário, é passivo, está sempre “disponível”, e jamais confronta. Para a psicanálise, isso pode indicar um investimento libidinal narcisista: o outro é amado enquanto extensão idealizada do próprio eu. Não há alteridade. O boneco representa um ideal de perfeição e obediência — uma fantasia de controle absoluto sobre o objeto amado.

4. Compulsão à repetição e elaboração do trauma

Freud descreveu a compulsão à repetição como uma tendência do psiquismo a repetir situações dolorosas não elaboradas, na tentativa inconsciente de dominá-las. Algumas mulheres que recorrem aos bebês reborn passaram por experiências traumáticas — como a perda de um filho, abuso emocional ou abandono. Ao cuidar de um boneco que “não morre” e “não parte”, elas repetem simbolicamente a situação original, mas agora com um desfecho reparador. O cuidado com o reborn pode ser uma forma de dar sentido ao sofrimento passado.

5. O reborn como antídoto contra o vazio

Em um mundo marcado pelo individualismo e por vínculos cada vez mais frágeis, o bebê reborn pode aparecer como resposta subjetiva ao vazio existencial. Ele oferece companhia, rotina, função. A mulher que o adota se torna novamente “cuidadora”, “mãe”, “protetora” — papeis que conferem sentido e identidade. Assim, o boneco não é apenas um objeto inanimado, mas um catalisador simbólico de significados profuprofunosl

Por fim, importante pensar assim:

A psicanálise não busca patologizar comportamentos, mas compreendê-los em sua singularidade. Perguntar “por que alguém cuida de um bebê reborn?” é menos importante do que investigar “o que esse bebê representa para essa mulher em particular?”. Trata-se de reconhecer que há, por trás desse gesto, um universo simbólico marcado por perdas, desejos, frustrações e tentativas de reparação.

Em alguns casos, o bebê reborn pode ajudar a elaborar o luto, fornecer estabilidade emocional ou até prevenir formas mais graves de sofrimento psíquico. Em outros, pode sinalizar um funcionamento psíquico mais regressivo ou defensivo, exigindo escuta clínica atenta. Em ambos os casos, o olhar psicanalítico se debruça não sobre o julgamento, mas sobre o enigma do desejo.

Fraterno abraço!

André Lacerda - Psicanalista