A compulsão ao jogo, ou jogo patológico, é uma forma contemporânea de sofrimento psíquico que se manifesta por meio de uma repetição insistente e autodestrutiva, muitas vezes incompreensível para o próprio sujeito. No campo da psicanálise, tal fenômeno não é reduzido a um transtorno de controle dos impulsos, como frequentemente propõe a psiquiatria, mas é abordado como um modo singular de subjetivação, enraizado em conflitos inconscientes, na economia pulsional e na relação do sujeito com o desejo e com o gozo.
Repetição e pulsão de morte:
Freud, em Além do princípio do prazer (1920), introduz a noção de repetição compulsiva como manifestação da pulsão de morte. A ação compulsiva não visa a obtenção de prazer, mas a repetição de uma cena originária traumática, na qual o sujeito busca, sem sucesso, uma possibilidade de domínio. (FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Imago.)
Nos casos clínicos, observa-se que a repetição da perda no jogo aparece como um modo de reafirmar um destino inconsciente, frequentemente vinculado à culpa ou à necessidade de punição — aspectos já sugeridos por Freud em O eu e o id (1923).
Aposta, risco e gozo:
A psicanálise lacaniana amplia esse campo ao introduzir o conceito de gozo (jouissance), que não se confunde com prazer. O gozo é uma forma de satisfação que inclui o sofrimento e que excede o domínio simbólico. (LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.)
O jogo compulsivo aparece, então, como um ato de gozo, onde o risco e a tensão proporcionam ao sujeito uma excitação que está mais próxima da pulsão de morte do que do princípio do prazer.
Função subjetiva do jogo
A escuta clínica mostra que o jogo pode ser um equivalente simbólico precário, ocupando o lugar de algo que falta ao sujeito: uma função paterna não simbolizada, um ideal em colapso, uma perda originária não elaborada. (NASIO, Juan-David. Os grandes casos de neurose em Freud: histeria, obsessão, fobia. Martins Fontes, 2001.)
Nasio aponta que o sintoma pode funcionar como uma “resposta subjetiva” a um impasse com o desejo do Outro.
Em muitos relatos clínicos, os jogadores descrevem o ato de jogar como uma “necessidade”, como algo que escapa ao controle da vontade — sinal de que o sintoma está a serviço da economia pulsional.
Dimensão estrutural:
O jogo compulsivo pode se inscrever nas três grandes estruturas clínicas:
Na neurose, aparece como sintoma, acompanhado de angústia e culpa. O sujeito joga, se arrepende, mas repete.
Na psicose, pode estar inserido em uma construção delirante. A aposta pode adquirir valor místico ou persecutório.
Na perversão, o jogo pode funcionar como montagem fetichista, erotizando a perda ou a transgressão da lei. (MILLER, Jacques-Alain. Introdução à clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.)
MILLER destaca a importância da estrutura na direção do tratamento e na escuta do sintoma.
Intervenções clínicas:
A intervenção psicanalítica não visa à erradicação imediata do comportamento, mas sim à escuta de seu sentido inconsciente. O jogo é interrogado não apenas como um problema de conduta, mas como uma resposta subjetiva à falta. ( SZPUNBERG, Tania Rivera. A aposta do sintoma: psicanálise e compulsões contemporâneas. In: COUTINHO JORGE, M. (org.) O mal-estar na civilização revisitado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.)
O objetivo do tratamento é permitir que o sujeito construa uma nova relação com o gozo implicado em sua repetição, promovendo a possibilidade de subjetivação do sintoma e de laço com o Outro fora do circuito autodestrutivo.
Espero que o texto ajude a quem precisa, e quem sabe, sirva de alerta aos que ainda não precisam.
Fraterno abraço!
André Lacerda - Psicanalista