Pelos labirintos de minhas lembranças (inconsciente??!!!) em cada quebrada de cada pedaço de caminho me deparo com experiências vividas, e no meu caso, na maior parte das vezes com casos clínicos desses muitos anos de atividade psicanalítica.
Hoje faço uma narrativa de caso clínico muito comum. Caso semelhante foi mostrado no filme de produção francesa de 1983 com o título de "LES MOTS POUR LE DIRE" ou AS PALAVRAVAS POR DIZER, mas que no Brasil (não sei porque) o título ficou como Voltar a Viver. No filme, a competente Nicole Garcia interpreta Marie (uma histérica contemporânea) e o não menos competente Daniel Mesguish vive o psicanalista (lacaniano é claro...risos).
Relato o caso para mostrar (principalmente aos leitores leigos) o quanto uma perturbação emocional (psíquica) pode comprometer a qualidade de vida de um pessoa e até mesmo a integridade dos profissionais de saúde que se envolvem na tentativa de ajudar o paciente.
O Caso Clínico:
Paciente mulher, 35 anos, divorciada, produtora executiva de televisão (na época do caso havia abandonado o emprego), com dois filhos (menino de 9 anos e menina de 12), em crise profissional e financeira, morando com a mãe. E sangrando. Literalmente sangrando.
Desde antes da separação ela sangrava. Bastava precisar sair de casa e começa um hemorragia. E mancha as roupas e os bancos dos coletivos, dos táxis, dos bancos da praça... deixava em todos os lugares as marcas de seu sangramento.
O ginecologista solicitara e conferira todos os exames cabíveis. Nada à constatar que explicasse tal situação. Encaminhara à outros especialistas das mais diversas áreas da medicina. Dezenas de exames. Dezenas de testes. Nada... nenhuma explicação...
Passam-se meses... investigações, etc... e nada... bastava sair de casa, e o sangue começava a fluir já na saída do prédio. Por fim o médico lhe convoca:
- Não vejo outra saída. Vamos operar. Deveremos achar alguma coisa num procedimento cirúrgico. Mas antes quero que tenhas uma conversa com um amigo meu. Ele é psicanalista e provavelmente vai te tranquilizar para que possas enfrentar essa cirurgia com mais calma.
A paciente sai resignada (sangrando é claro) com um cartão do psicanalista.
De imediato o médico telefona ao seu amigo psicanalista
- Te peço que atendas uma paciente minha. Vamos operar (e relata todo o caso). Acho que deve ser coisa grave. Ela está com os nervos em frangalhos. Te peço que converses com ela e que a acalme. Pode ser?
- Tens certeza que nada foi diagnosticado nos exames clínicos e laboratoriais? Nem nos diagnósticos por imagem?
- Não! Nada! Não achamos nada! Estamos em junta médica há 30 dias e não achamos nada!
- Certo. Atendo ela hoje mesmo.
- Ela já deve estar chegando no teu consultório. Mandei agora direto pra ai. Sabia que tu atenderias.
- Tudo bem. Obrigado pela confiança.
- Te agradeço. Abraço!
O interfone toca. A secretária avisa ao psicanalista:
- A paciente do Dr Fulano acaba de chegar.
- Pode mandar passar.
Ela chega e permanece de pé. Olha pra todos os lados do consultório. Se fixa por minutos no quadro do narcíso. Olha nos olhos do psicanalista com olhos de poucos amigos e metralha de cara:
- Sou paciente do Dr Fulano. Ele me mandou aqui. Aliás, acho que ele está mais perdido do que eu. Não preciso de um psicanalista.
- Boa tarde pra senhora também. Sente-se por favor, vamos conversar.
- Não vou sentar... e pode perder as esperanças de me ver deitada naquele divã ali.
- Porque não sentar? Nossa conversa será demorada... fique mais a vontade!
- Não vou sentar. E se eu sentasse teu prejuízo seria maior, pois esse veludo branco da poltrona ficaria mais vermelho que uma bandeira do PT... afinal, eu sangro... tu sabes né?
O psicanalista pede à secretária um forro de plástico. Aquela não era a primeira paciente propensa a deixar marcas de substâncias orgânicas nas poltronas e divã do consultório.
Cadeira forrada, a paciente senta. Mas não se acomoda. Não relaxa. Encara o psicanalista tesa. Agressiva até. Um tanque de guerra prestes a disparar. O Psicanalista pergunta:
- Em que posso te ajudar?
- Não pode. Eu sangro. Querem me operar. Vão me abrir sem saber o que eu tenho.
- Me fale de tua vida, de teus desejos, de tuas dores... me conte tua história!
- Já te disse: EU SANGRO. Esse sangue é meu problema. O resto não tem problema nenhum comigo!
- Bem... me fale de tudo... quero saber de tudo... menos do teu sangue. Fales o que quiseres... tudo de ti será ouvido e acolhido. Mas não quero ouvir falar de teu sangue.
- Então vai à merda! Tchau!
Levanta-se... olha pro forro da cadeira manchado de sangue... olha pro analista e sai a passos largos e batidos e bate a porta com força...
A secretária entra com olhos arregalados e assustada pergunta:
- Posso mandar retirar o forro da cadeira??? está tudo bem???
- Não retire o forro! A paciente vai voltar em breve. Está tudo bem. Não se assuste. Tu trabalhas numa clínica onde os sofrimentos se manifestam de todas as formas.... fique tranquila e quando a paciente voltar, encaminhe sem anunciar. Mande passar direto.
Passados vinte minutos a paciente volta... ainda com rompantes agressivos e querendo demonstrar indiferença:
- Minha cirurgia será daqui há 20 dias... até lá, vou conversar contigo. Mas já te aviso: Não preciso de psicanalista.
- Tudo bem... vamos conversar! Vou mandar limpar o forro da poltrona... espere um minuto apenas.
- Não... deixa o forro ai. Esse sangue é meu. Vou sentar assim mesmo. Manda tirar depois!
E seguiu-se uma longa conversa. Ela falou de sua vida e de seus amores e desamores, de sua relação com os pais e com os filhos, e de seus problemas no emprego. Falou das vezes em que traiu e das vezes em que foi traída. No fim da conversa se surpreendeu, pois incrivelmente não sangrou uma gota sequer enquanto falava. Quando manifestou isso o psicanalista verbaliza:
- Não quero ouvir falar de teu sangue. Te espero amanhã no mesmo horário. Tenha uma boa tarde.
Ela levanta-se e recolhe o forro de plástico da poltrona e envia com raiva dentro da bolsa e diz:
- Vai pro inferno!!! Nunca mais volto aqui!
No outro dia, ela voltou... trouxe o forro de plástico limpo e de imediato arrumou-o sobre a poltrona... e mostrou ao psicanalista um forro de plástico maior... e diz ao psicanalista:
- Esse forro maior é pro divã... quando quiseres, eu vou pro divã.
E falou... falou... e falou... Na terceira semana já não tinha tantas hemorragias e o cirurgião optou por esperar mais um tempo antes de opera-la.
Passadas algumas semanas não sangrava mais. Não precisou operar. Em seis meses retomou o emprego e os cuidados da casa e dos filhos. Achou um namorado que a amava e não tinha vontade de traí-lo.
Passados três anos, com a vida retomada lhe é sugerida a alta pelo analista, ao que explode ( mas sem a agressividade da primeira vez... e até com um sorriso verdadeiro):
- Bem capaz!!! Tu estás maluco??? Só de pensar em não vir aqui duas vezes na semana, fico morrendo de saudades do meu sangue!!!! Até quinta feira Doutor!!!!!
E saiu caminhando leve pela Rua da Praia... e levou frutas e flores que comprou no velho Mercado Público.
Fraterno abraço!
André
P.S.: Recomendo o filme citado.