Sob o céu azul daquela manhã carioca, ele lembrava do início e do fim de tudo. Porque o fim tinha sido recente e ainda sangrava. E cada gota de sangue caída era a certeza de que o sangramento seria constante por um bom tempo ainda.
Mas acreditava que por mais sofrido que o momento transcorra, no início a dor foi mais lancinante.
No início ela vendeu o próprio corpo para o mesmo ginecologista inescrupuloso que assistiu seu parto e acompanhou o pré natal de sua gestação indesejada e imprevista.
Ela precisava. O perverso médico ofereceu os trinta dinheiros de sua iniciação destrutiva, Ela topou.
Naquela primeira vez experimentou sentimentos terríveis. Mas engoliu o vômito de seu nojo. Os trinta dinheiros lhe ajudariam.
E se deu ao primeiro "cliente" por trinta dinheiros por mais algumas dezenas de vezes. Mas já na primeira vez, encarou aquilo como um "trabalho" e estava pensando em diversificar a atividade até que conseguisse um emprego decente que lhe possibilitasse viver com certo conforto.
Começou a frequentar boates. E porque era um raio de sol de linda no esplendor de seus vinte anos de idade, tornou-se rapidamente uma das mais requisitadas. E já não eram mais os trinta dinheiros. Voltava pra casa no final das madrugas com o corpo e as entranhas dilacerados. Mas na bolsa de grife cara habitavam centenas de dinheiros. Talvez milhares. Poderia alimentar o filho e quem sabe até ajudar mais alguém.
Desenvolveu um mecanismo de defesa do ego específico para todo aquele turbilhão. Seria apenas um "trabalho". Uma atividade remunerada com tempo pré estabelecido. O telefone tocava. O "cliente" marcava e combinavam o preço. Combinavam em qual alcova se encontrariam. Ela ia. Fazia. Recebia o preço de sua alma. Pronto. Tudo se terminava em uma hora. Com sorte em duas, pois dai o preço dobrava. Voltava pra casa e pra sua vida onde tinha nome próprio. Pensava que tinha que cuidar em não confundir seu próprio nome com o nome de trabalho que adotara.
E assim se deu. Atendia nas 24 horas do dia. E eram 5, 6, 10 sessões de puro êxtase sexual a cada 24 horas. Para os "clientes". Para ela era 1 hora (duas, com sorte) de pura figuração e com o tempo tornou-se uma perfeita "profissional". Aquilo era o seu "trabalho".
Durante uma década viveu equilibrando-se na corda bamba de sombrinha. Afinal tinha uma vida com família e amigos e tinha uma vida paralela que ninguém sabia. E deus o livre se alguém descobrisse ... Teve que conviver com a mentira e tornou-se também "profissional" na mentira. Aprendeu o difícil ofício. Tornou-se "expert" na arte de seduzir. Mas cada vez que "trabalhava" sentia que seu próprio sangue ia congelando... e congelando... e congelando...
E quando ele apareceu na sua vida ela já não tinha sangue nas veias. Era um gelo.... talvez (??) um pouco derretido porque ele era envolvente, mas ainda assim um gelo...
Contou a verdade (no fundo apenas uma pequena parte da verdade). Ele aceitou. Fizeram juras. Ela não cumpriu. Ele não cumpriu em contrapartida. Brigaram. Ofenderem-se:
- Cretino! Mentiroso! Enrolador!
- Mentirosa! Meretriz! Cretina!
Ele matou-se.
Ela seguiu a vida... Corpo e entranhas dilaceradas e escravizadas pelo difícil ofício.... Corpo e entranhas que sequer existiam mais... Era só uma máquina. Uma máquina e uma alma escravizada pelo vil metal dos trinta dinheiros...
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Essa crônica é apenas uma estória. Escrevi assustado com o glamourizado tema da prostituição. Sim. Book Rosa, Ficha Rosa, Acompanhamento VIP. Tudo é na verdade PROSTITUIÇÃO. E tudo isso é produto da Exploração sexual, e sempre vinculado ao sofrimento humano.
Fraterno abraço
André Lacerda - Psicanalista
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