sábado, 14 de junho de 2014

Os Sapatos do Matador!

Dia de sábado! Houve um tempo em que o psicanalista dedicava seus sábados aos pacientes internos numa ala de um hospital de Porto Alegre. Essa ala, era conhecida pelos profissionais como sendo a dos pacientes terminais.
Eram pacientes em estado gravíssimo, sem esperanças médicas, sem chances de sobrevida, enfim, sem mais nada a fazer. Então... no decorrer da semana os médicos mantinham com seus pacientes o seguinte diálogo:
- As coisas estão evoluindo. Vamos manter a medicação e vamos esperar alguma reação. Mas tenho uma novidade: No sábado, pedi pra um amigo psicanalista te visitar e conversar contigo e com certeza ele vai te ajudar na tua recuperação.
Então o médico falava com o psicanalista amigo, explicava a situação e de maneira informal essa relação se estabelecia... e o psicanalista topou... e provavelmente naqueles 10 meses viveu experiências inesquecíveis.
Antes do primeiro sábado preparou-se. Estudou e reestudou Freud e suas abordagens sobre a morte. Orientou-se mais do que o normal e sua orientadora foi acolhedora e generosa. Resolveu deixar um pouco de lado o pragmatismo de Lacan. E... pela primeira vez pensou que se não fosse ateu as coisas seriam mais fáceis. Afinal, quando não se tem mais nada à oferecer, sempre se pode oferecer uma prece. Mas ele não rezava. Mas acreditava na verdade de seu ofício, na serenidade de sua alma e na pureza de seu coração. Mas mesmo assim ensaiava uma prece pedindo que São Freud o iluminasse, pois estava inexoravelmente meio perturbado com a ideia de ser para aqueles pacientes, o anjo negro da morte... ou o barqueiro Caronte que lhes conduziria pelo Aqueronte, rio do infortúnio, no caminho que terminaria nas portas de Hades, onde Cérbero os aguardaria.    
Na Sexta da véspera não dormiu! O copo de cabernet ficou cheio. Nem água descia... e a boca estava seca...
Sábado primaveril. O trânsito fluía com anormal rapidez e ele torcia por um engarrafamento. Chegou.
O corredor de acesso era de um branco sombrio e gelado. Na porta da ala um aviso: Acesso restrito à pessoas autorizadas. Olhou seu crachá e pensou: Cacete!!!!  Sou autorizado!!! O porteiro não vai me barrar! Cacete!!
Entrou.
Pensou que não podia citar Freud naquele primeiro encontro. Como falar dos demônios que todos nós temos e que o psicanalista quase sempre desperta??? Não... não era hora de Freud.
Pensou que seria melhor citar Hipócrates e partes de seu célebre juramento:
 
"Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com homens livres ou escravizados.  Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre!"
 
Todos os pacientes mateavam o verde de suas esperanças e a cena que o psicanalista viu não tinha a nada a ver com a cena que esperava.
E o mais espirituoso dos pacientes da ala dos "terminais" iniciou o diálogo:
- O senhor é o médico de loucos que o Dr.Fulano mandou nos ver nos sábados?
- Não... risos... o Freud disse que os psicanalistas eram médicos de almas.... risos ( tímidos risos)
- O senhor viu que nós todos aqui usamos uniformes né?? Não temos cabelo e fazemos a mesma dieta pra emagracer... kkkkkkkk ( ele gargalhava... )
E outro paciente vai chegando... e outros chegando... e todos formaram um roda em torno do psicanalista...
- Aceita um mate Doutor???
- Claro... mas não quero incomodar... Só vim conversar com vocês... não quero aborrecê-los!
- Então toma esse mate tchê!!!!kkkkkk ( e todos gargalhavam.... )
E aquele sábado foi um sábado de conversas sobre futebol, política, filmes e até da boca da Angelina Jolie falaram.
Já pelo meio da tarde aquele paciente mais espirituoso mais uma vez manifestou-se diretamente pro psicanalista:
- Doutor... relaxa! Todos nós sabemos porque os outros especialistas te mandaram aqui. E todos aqui gostaram de ti, pois esperavamos um chato que viesse falar de doença e de morte etc. Tu veio e falou de futebol, de mulher, de tv... e até mateou e almoçou com a gente... tu é o único estranho que não vem aqui falar de remédios e exames...Relaxa tchê!!!! E volta sempre... na próxima vamos fazer uma pipoca pra ver o futebol na TV.
O psicanalista de acolhedor sentiu-se acolhido... e quase (eu disse QUASE...risos) foi às lágrimas.
- Está bem! No próximo sábado estarei aqui. Mas eu trago a pipoca e a erva pro mate!
- Te esperamos... mas ó! Não precisa vir com esse sapato da próxima vez tá???? kkkkkkkkk (TODOS os pacientes cairam numa gargalhada geral).
Só então o psicanalista percebeu que naquele sábado tinha trocado o terno e gravata habituais e vestido um jeans com um tênis branco. O tal tênis tinha nas laterais a marca em letras garrafais: KILLER ( que em inglês significada MATADOR)!!!
Foram dez meses  até que a vida os separou naquele último mês do ano de 2008.
A morte separou o psicanalista de muitos.
Mas a vida que separou as vezes ainda reaproxima quem ainda está vivo.
E sempre, ainda hoje, quando algum dos pacientes sobreviventes encontra o psicanalista ainda o abraça com um sorriso largo e pergunta:
- Como estás matador!!!!!!
Todos, vivos e mortos, ainda tocam fundo no coração e na alma do psicanalista. E Não tem dia que ele lembre de cada um... e agradeça pelos 40 sábados vividos... Aquelas sábados purificaram de verdade seu coração cartesiano... e deixaram sua alma mais serena!
 
Fraterno abraço!
André   
 
    
    

Um comentário:

  1. Olá André,

    Gostei de seu conto. Sua escrita é agradável e é muito real. Achei bacana você mostrar a relação analista e analizados pode, e deve ser vista pelos dois lados. E mais, através das conversas informais, onde são discutidas questões aparentemente banais, como futebol, mulheres, filmes, televisão etc, é perfeitamente possível entender e ser entendido pelas pessoas. Vou ler outros textos seus. Parabéns.

    Roberto Lira.

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