terça-feira, 18 de novembro de 2014

Caso Clínico: Só mais um sobrevivente!

Era uma tarde daquelas no prenúncio de verão. Calor de trinta e muitos graus...
Ele chegou com humildade... melhor dizendo... ele chegou com sinais de extrema humilhação... 
E ele já entrou se explicando:
- Antes de começar-mos gostaria de dizer que essa vai ser minha primeira e última consulta, e na verdade estou aqui na espera que tu faças um milagre em apenas essa sessão. Estou acabado e preciso somente de orientação.
O psicanalista imaginou que o estigma de milagreiro não iria lhe cair bem e pensou em interromper de imediato a conversa... mas... ficou atento... afinal não ia negar aqueles cinquenta minutos de estruturação. Perguntou:
- Que te trazes aqui?
- Minha vida acabou. Meu último grande problema foi ter perdido o emprego. Tenho mais de quarenta anos... sabes como é né?
Ao longo de minha vida fiz escolhas erradas e muitas vezes fui injusto com os outros e até comigo mesmo. Iludi, menti, traí e fiquei devendo favores e dinheiro. Nunca fiz maldades voluntariamente, mas hoje sei que algumas ou muitas vezes fiz o mal a quem não merecia. Exerci o poder quando me foi permitido e muitas vezes como um tirano e não como um líder. E usei do poder que tinha, e que mesmo sendo efêmero e limitado muitas vezes mexia com a vida das pessoas que me cercavam e que em mim confiavam. E nem sempre minhas ações foram benéficas. Me arrependo de todo o mal que causei e acho até que já paguei por tudo. 
O psicanalista interrompeu e perguntou:
- Estás aqui pela culpa que sentes de tudo isso?
- Não. Como te disse eu acho que por esses erros eu já paguei.  Estou aqui por que estou sem norte. Falta emprego e dinheiro. Sobram dívidas. Sobra decadência e me sinto indigno de encarar meus filhos. Sinto vontade de me matar. Aliás penso que morrer seria bom, já que morrer é inexorável.  
O psicanalista conseguiu ver que definitivamente não iria conseguir fazer fazer o milagre e depois de alguns minutos verbalizou:
- Não sou juiz e por isso não vou julgar tuas atitudes como certas ou erradas. Também não sou advogado e por isso não posso dizer o que deves fazer para saldares tuas dívidas. Não sou policial e não vou ver em ti crimes ou más atitudes. Penso que devemos juntos identificar os materiais que foram usados na tua construção e escolher aqueles que precisam ser substituídos e quais ainda podemos aproveitar. E penso que tua morte não te perdoará de nada. Penso sim, que tu és um sobrevivente. Um sobrevivente. Não um morrente! 
- E o que tu me recomenda então?
- Te recomendo um tratamento. Começaremos com três sessões semanais.
- Não tenho como te pagar. Sequer tenho dinheiro pra pagar a consulta de hoje. Entrei aqui no desespero. O calote que vou te dar hoje foi premeditado. 
- Te acolho. Me pagas quando puderes. Quero te ajudar. E se eu tiver sucesso, tu me ajudarás. 
Ali estava se iniciando um forte vínculo clínico. 
O psicanalista ainda pensa:
- Seremos dois sobreviventes??

Fraterno Abraço 
André Lacerda - Psicanalista

P.S.: Não esqueçam: Meu livro Reflexões do Psicanalista na Vida Cotidiana na versão ebook, está à disposição dos amigos. Pedidos no email andrelacerda15@gmail.com



  

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