Ela chegou numa manhã de inverno e eu não vi, mas todos que estavam presentes disseram que sua chegada causou frisson e que o própio sol matutino ficou babando pela sua beleza.
Era linda. Loura. Olhos azuis e corpo de sílfide que baila ao caminhar. Uma menina... 20 anos...
O psicanalista não se admirou muito quando ela antes mesmo de se apresentar deitou no divã freudiano e acidentalmente(???) deixou à amostra um belíssimo par de pernas. Essas coisas acontecem com frequência na atividade clínica. São nesses momentos que o psicanalista deve realmente saber qual é o seu lugar no processo, e sobretudo saber que na clínica tudo deve ser entendido como demanda clínica.
Pensou:
- Valei-me meu São Lacan!! Prevejo tempestade na minha calma manhã de inverno. Valei-me!!
Estabeleceu (ou procurou estabelecer) o vículo inicial:
- Fico feliz em te receber. Sinta-se a vontade nas nossas sessões. Mas te peço que sentes aqui na poltrona. Vamos conversar um pouco. Terás tempo para o divã! Agora é tempo de eu te conhecer. Preciso saber de tuas dores, do que te falta, de tua vida enfim. Porque me procuraste?
Ela levantou-se do divã... olhou-se no espelho de uma das paredes... ajeitou a saia e o cabelo. Sentou solenemente na poltrona cruzando quase 15 metros de pernas e pigarreou:
- Sou ninfomaníaca. Sou bipolar. Sou hiperativa. Sou depressiva. Acho que sou border. Sou inteligente pra vida mas sou burra pra faculdade. Exijo fidelidade mas não consigo ser fiel. Enfim, quero que tu me internes naquela clínica lá da zona sul. Aquela com área verde, quadra de tênis, sauna, piscina, etc. Já olhei no site. Mas lá não deixam levar o celular né??? Mas isso tu podes autorizar né?
O psicanalista pensou, e ficou novamente com vontade de chamar São Lacan e que viesse com o reforço do São Freud... e que deixasse a Santa Melanie Klein na reserva pro segundo tempo...
- De tudo que falaste quero que me expliques porque te achas inteligente pra vida e burra para as coisas da faculdade. Podes fazer isso?
- Claro! Mas isso é meio óbvio né? Vivo bem e tenho amigos que me querem bem. Leio bons livros e os entendo. Acho que a cultura é nosso maior bem. Consigo conversar com todos e todos me acham interessante. Meu problema é com os teoremas, conceitos matemáticos, geometria analítica, algebra, cálculo e essas coisas que são tratadas na faculdade de arquitetura.
- Entendi. Fazes arquitetura. Que legal. Mas essas coisas todas não são curriculares do próprio curso?
- São. Mas eu nã gosto!
- Não gostas de arquitetura?
- Gosto! Mas só da obra pronta. Quero ser arquiteta porque acho bonito ser arquiteta. Desde menina minha mãe disse que eu levava jeito pra arquitetura. Tu não acha que tenho cara de arquiteta?
- Acho que tens cara de Sofia (obviamente que não é esse o nome da paciente). Mas me diga: Porque dizes que és bipolar, borderline, hiperativa e ninfomaníaca? E de onde vem essa ideia de internação?
- Bem...
Ela deu uma pausa... e pensou... e pensou... e pensou...
- Quando sinto vontade eu faço sexo. As vezes fico triste quando algo não está de meu agrado. E as vezes fico a milímetros de explodir quando minhas vontades não são atendidas.
- Mas quem diagnosticou em ti essas psicopatologias?
- Tu não tá entendendo??? Se eu tenho vontade eu trepo mesmo! E nem tenho namorado! Isso é coisa de tarada... tá na cara que sou ninfomaníaca...
- E????
- Será que tu não tá vendo que preciso ser internada????
Naquela manhã de inverno os santos da Psicanálise não vieram ao socorro do psicanalista. Mas naquela hora que se seguiu, o psicanalista conseguiu entender perfeitamente todas as demandas da jovem mulher.
Foi um tratamento breve... em alguns meses Sofia trocou a arquitetura pela comunicação e hoje milita no campo da publicidade, além do cinema e do teatro.
Dia desses o psicanalista encontrou-se com ela num restaurante da cidade. Conheceu seu marido e seus dois filhos. E viu que era uma família feliz.
Naquele dia voltou pra casa com a tranquilidade de ter exercido seu ofício do lugar que lhe era devido. E lembrou-se da máxima entre os psicanalistas:
" Nós somos como aquele vidrinho de remédio que nosso paciente guarda no armário do banheiro. Quando a dor passa, aquele vidrinho ainda fica ali para o caso de uma recaída. Quando não existe mais dor, o lugar do vidrinho de remédio é no lixo."
Me sinto muito feliz por ter escolhido esse ofício... rs
Fraterno abraço
André
P.S.: Recordo à todos que meu Livro Reflexões do Psicanalista na Vida Cotidiana está à disposição dos amigos e amigas. A edição que está disponível é em formato de EBOOK... pedidos pelo email andrelacerda15@gmail.com
Ótima narração, adorei!
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