Trata-se é da vida e da morte. Sim, a vida se esvai, se esvai, sem que possa impedir. É isso, só isso! Porque me iludir! Não é patente a todos, menos a mim, que eu estou morrendo e que é apenas uma questão de semanas, de dias, talvez agora mesmo?
Havia luz na minha frente, mas agora só trevas.
Eu estava no mundo e vou abandoná-lo! Para onde irei?
Eu deixarei de existir, mas o que haverá depois? Nada.
Então, onde estarei quando não mais existir?" (A Morte de Ivan Ilitch; Tolstói)
O trecho do livro do Tolstói fervilhava na sua mente naquele gélido final de tarde de inverno já saindo do prédio do consultório do cirurgião.
Há duas semanas aguardava o resultado da biópsia do carocinho extraído. "Aquilo" nem doía. "Aquilo" nem incomodava. "Aquilo" sequer aparecia aos olhos dos outros. Certo que tinha havido aquele evento há cinco anos atrás. Mas "aquilo" foi tirado por completo. E fez todo o acompanhamento oncológico regularmente e "aquilo" estava resolvido. Porque foi mexer "naquilo" ???? "Aquilo" era o câncer!
Aquele maldito papel lhe queimava as mãos que estavam frias e suadas. E o maldito papel era friamente assustador com suas letras frias e assustadoras escritas em caixa alta:
"METÁSTASE DE NEOPLASIA MALÍGNA".
No primeiro banco da primeira praça que apareceu sentou. Chorou. Fumou. Fumou de novo...
Cofiava no seu oncologista e agora era tocar a vida. Organizar a rotina e ter fé na ciência e em todos os santos do céu e da terra.
O tratamento seria duríssimo e longo. Um ano de quimioterapia. Os efeitos do remédio seriam devastadores ao mesmo tempo que salvadores. Agora era pensar numa babá em tempo integral pras crianças, e rezar para que o marido desenvolvesse milagrosamente habilidades femininas de dona de casa. Porque só uma mulher tem capacidade múltipla de ser mãe, mulher, faxineira, cozinheira, profissional de ponta, e de fazer tudo ao mesmo tempo.
Fumou mais um cigarro daqueles bem fraquinhos de cravo e menta. Pensou:
- Mas tem o psicanalista!!!!!!! Em segundos estava dirigindo à cem por hora rumo ao consultório do psicanalista.
...................
Ele conhecia bem aquela paciente. Jovem, formação superior, bem sucedida profissional e pessoalmente, e pela Psicanálise construiu sólidas estruturas emocionais.
E agora essa! Câncer....
Ela havia saído à pouco do consultório onde lhe solicitou acompanhamento durante o tratamento oncológico.
Imediatamente começou a estabelecer as bases terapêuticas para aquele caso. Foi aos livros e anotou os pontos fundamentais.
Inexoravelmente teria de ir em direção à especificidade do objeto psicopatológico, entrando no cenário do câncer e a figura da morte e passando pelo drama do padecimento.
Pensou que Freud e sua formulação sobre o caráter de irrepresentabilidade da morte seriam de grande ajuda assim como os estudos da vertente psicopatológica do desemparo.
Teria que rever e rever cotidianamente as teorias da angústia e as suas relações com a experiência de separação do objeto. E passou o resto da noite e quase toda a madrugada estudando. Antes de dormir pensou que estava pronto para andar de mãos dadas com sua paciente pelos infernos que ela teria que percorrer.
Acompanhou na manhã seguinte a sua paciente na primeira sessão de quimioterapia. E foi ali que percebeu que tudo o que programou não seria suficiente.
Naquela manhã, o psicanalista descobriu que deveria pensar num jeito de transformar a sala de quimioterapia num consultório lacaniano. E a poltrona confortável seria um divã freudiano.
Prezados amigos leitores!!! Essa crônica não é uma mera peça literária. É um caso real e estou tendo a oportunidade de ser um dos protagonistas. Vou narrar aos amigos toda a rotina laboral do psicanalista no tratamento oncológico/quimioterápico. E acreditem: Está sendo uma das mais marcantes experiências do velho psicanalista aqui. E está sendo uma experiência de VIDA. Não de morte. Espero que acompanhem e gostem.
Fraterno abraço
André Lacerda - Psicanalista
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