quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ah! Morcegos...

Hoje vou relatar um de meus primeiros casos clínicos, lá no inicio da carreira. O faço, para que os leitores comecem a atender melhor como funciona o processo psicanalítico na sua forma clínica. Comunico (sem risos) a patrulha doi-codiana, que não tenho pretensão em ensinar atividade clínica a ninguém. Minha pretensão é continuar sendo um psicanalista e livre pensador, e se eu conseguir fazer com que mais gente entenda e se interesse pela psicanálise, certamente serei melhor psicanalista e mais livre em meu pensamento.
O caso:
Rapaz de 23 anos, procura atendimento clínico psicanalítico, achando-se deprimido, reprimido e retraído. Pais separados, desconfia que o pai não o admire nem goste dele, e tem sonhos recorrentes que produzem efeitos avassaladores à ponto de o paciente ter extremo medo do anoitecer e da hora de ter de dormir. No sonho, lhe surge um grande morcego enquanto dorme e a simples aparição desta "besta fera" lhe causa extrema dor e sofrimento.

Na primeira sessão, descartei o diagnóstico produzido por alguém (omito por questões éticas) pois mesmo aquele que se interessasse pouquíssimo por psicopatologias saberia que numa HD (hipótese diagnóstica) de Depressão, três aspectos incapacitantes deveriam ser observados: 1) A incapacidade de relacionar-se; 2) A incapacidade de amar e 3) A incapacidade de trabalhar. Não era o caso de meu novo paciente, e passei a ter (sem falar pra ele) como HD, aquilo que o CID(código internacional de doenças) 10 ( por ser sua 10ª edição)  estabelece com Estado depressivo Recorrente, com o código F 32, se não me fala a memória ( não vou ao cid pra conferir isso tá??? risos).
Passei  a escutá-lo. Muitas vezes me emocionei com ouvindo tanta falta de estima e tanta tristeza.
Eram três sessões por semana e comecei  a perceber que tinha algo muito maior do que toda aquela dor que meu paciente relatava cada vez com mais veemência.
Não tinha amigos, não tinha mulheres, não tinha amor, não tinha nada. No seu trabalho o consideravam um verdadeiro pateta e um coitado, apesar de seus empregadores o considerarem produtivo e inteligente. 
Ah... e sempre terminava as sessões contando o sonho da noite anterior... O grande morcego que o assombrava noite após noite.  
E assim foi...
Passadas algumas semanas, o paciente começa a melhor. Era lógico! estávamos juntos fazendo sua catarse. Estava sendo ouvido. Estava enfim  "limpando a chaminé".... fiquei feliz... mas ainda me faltava algo... 

Um dia, sessão normal, paciente já apresentando alguma evolução, notei que ele não falou do tal sonho...deixei... imaginei que provavelmente os motivos daquele sonho já pudessem ter sido dissolvidos em alguma sessão sem que eu me desse conta... esperei...
Outra sessão.. e nada do sonho...
Sessão seguinte... nada de sonho novamente.
Perguntei:
- Tens sonhado?
- Não!
- Então teus fantasmas cansaram de ti?
- Que fantasmas André?
- Aqueles que te visitavam a cada noite no início de nosso tratamento!
Ele me olha...
Noto que seus olhos se enchem de lágrimas... e pronuncia:
AH!!!! MORCEGOS.....
Silêncio absoluto por alguns minutos...
Perguntei:
- Que amor sentes que não podes falar? Que amor sentes que não pode ser visto?  
Então ele me contou... falou durante 5 sessões de amores proibidos e condenados... e isso não vem ao caso.
Notem, que apesar de  Lacan ter dito que os psicanalistas são os Xamãs modernos, não tenho e não conheço nenhum psicanalista com poderes mágicos ou metafísicos.
O Inconsciente se estrutura em linguagem.
O psicanalista ouve, o que está por trás da fala. É ali que muitas vezes o inconsciente se revela.
Perguntado pelos fantasmas que o assombravam, o paciente fala :
AH! MORCEGOS... E o psicanalista ouve:
AMOR CEGOS....
O Paciente está bem e feliz... e seus amores já tem olhos e podem ser vistos.
Fraterno Abraço
André

  

   

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